...foi então
que vi tudo se desmanchando no ar como poeira se dispersando diante de meus
olhos estarrecidos, então acordei...
Ao abrir
meus olhos vejo à minha frente uma poltrona, e à minha esquerda uma paisagem
bucólica e serena passando pela janela. Oh sim, me dei conta que ainda estou de
viagem. Minha avó me aguarda ansiosamente na próxima estação e o meu trem deve
chegar lá por volta das 17h.
Estou
bastante cansado e já perdi a noção de quanto tempo estou sentado aqui a
observar a paisagem que sempre passa em direção contrária ao sentido do trem,
como devia ser de fato. Vejo campos, montes, árvores, gado... Tudo passa por
mim e eu só tenho oportunidade de ver cada minudência do exterior do trem num
lance de vista apenas. É como minha vida, pois tudo o que fiz só tive
oportunidade de desdobrar uma única vez, sejam erros ou acertos, não importa,
tudo ficou pra trás e o que me resta é o presente que vivo. Porém o próprio
presente vira passado num piscar de olhos, então o que me resta é viver dos
fantasmas do passado, que são como uma paisagem que se movimenta no mesmo
sentido do trem que me carrega. Assim como o rio que vejo agora, onde a
correnteza cursa no sentido da estação que almejo chegar, apesar de ela passar
pela janela. Desta forma, observo sempre o deslocamento das mesmas águas.
Entretanto, passei a perceber que, na verdade, o rio acompanha o rumo das
correntezas, como se o trem estivesse viajando a ré. Quando o rio se encerra no
horizonte posso mesmo confirmar a minha teoria, pois vejo as montanhas passando
pela janela na direção oposta do que seria lógico. Assim a paisagem parece
acompanhar o ritmo do trem, como se este estivesse fazendo a viagem ao inverso
e tudo o que aprecio agora pela janela parece me escoltar nesta viagem.
Este
sentimento estranho que sinto por vivenciar algo incomum me trás a ingenuidade
e a curiosidade da minha infância e volto a reviver aquilo que jamais pudera
ter sonhado readquirir em minha vida: reviver o passado novamente. Este, tão
incerto quanto às nuvens que ameaçam precipitar sobre a terra.
Fito as
nuvens pesadas no céu, ávido de esquadrinhar a maneira como a chuva há de se
exibir no meu universo particular. Ela, então passa a cair do céu, como devia
ser e eu espreito com sublime interesse o seu percurso sempre de cima para
baixo. O mais curioso é que os campos sugerem sempre a secura de um mês
ensolarado, como se ignorasse a chuva que cai sobre si. Porque de fato, as
coisas começam a ficar coerentes dentro da minha incoerente visão da paisagem
que o exterior me brinda. Sim, os campos permanecem intactos porque a chuva
precipita ao inverso, fazendo-me acreditar que ela implora para retornar ao
céu. O frio que vem de fora não é mais lânguido que o frio que sofre a minha
espinha na intensidade de uma clausura em um elevador desgovernado subindo em
alta velocidade. Essa pressão faz com que o meu corpo seja comprimido contra a
poltrona. Ora, mas o que há de acontecer com esse trem, que passa a acompanhar
o ritmo da chuva às avessas? Tudo o que via antes sumiu da minha vista e tudo o
que posso observar agora é o céu nebuloso e acinzentado pulsando em fachos de
luzes brancas que passam a invocar uma grande tempestade.
Aqui dentro
do trem há uma grande agitação. As bagagens estão reviradas por toda a parte e
pessoas passam a correr sem sentido, se debatendo com grande furor. Apesar de
todo o tumulto, eu prefiro tentar me manter colado à poltrona a observar pela
janela o destino dessa viagem. As nuvens aparecem cada vez mais carregadas à
medida que a chuva retorna para o céu, desafiando todas as leis da natureza.
Num
determinado momento, a chuva resolve aprontar mais uma travessura contra a
gente e passa a descarregar as nuvens com intensa ira, formando então um imenso
temporal. Nada se vê mais pela janela além de água se chocando no trem como uma
manada de búfalos! E como já era de se esperar, o trem passa a seguir o ritmo
da natureza e se precipita junto com o temporal. Todos os passageiros são
lançados ao teto de forma feroz, inclusive eu, que tentava manter a calma,
sentado na minha poltrona a observar pela janela o cruel jogo supostamente
protagonizado pela natureza. Lembrei da minha avó que me esperava na próxima
estação, muito provavelmente trazendo uma barra de chocolate, como sempre fazia
quando eu a visitava. Talvez essas sejam apenas lembranças que ficaram para
trás, assim como tudo o que passava pela janela e que podia experimentar
contemplar apenas uma única vez nessa viagem.
E após
alguns segundos, sentimos um grande impacto, como se o trem tivesse atingido o
rígido solo, e fomos todos lançados de forma violenta contra o chão. Tudo
aconteceu em milésimos de segundos. Minha cabeça rachou no braço de uma
poltrona e a última coisa que pude vislumbrar antes de perder a consciência foi
tudo se desmanchando no ar como poeira se dispersando diante de meus olhos
estarrecidos...
Então
acordei.
Ao abrir
meus olhos, meio bêbado de sono ouço alguém falando: “17 horas na estação”.
Minha primeira reação foi me prostrar sobre a janela e olhar a paisagem, que de
traquinice passou a brincar com os meus nervos irrequietos. Mas desta vez tudo
o que havia diante dos meus olhos era uma paisagem estática, como um quadro na
parede, e na minha mão uma barra de chocolate pela metade.
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